Maria Rita Kehl e a crítica aos movimentos identitários
Uma recente entrevista de Maria Rita Kehl no programa Dando a Real gerou uma intensa polêmica, especialmente após a repercussão negativa de sua crítica ao que chamou de “movimentos identitários”. Em vez de um debate fundamentado sobre suas ideias, parte da resposta que recebeu veio na forma de ataques pessoais, incluindo referências à sua linhagem familiar, o que apenas exemplifica o problema. Se queremos um debate sério sobre os desafios dos movimentos sociais contemporâneos, precisamos rejeitar tanto a instrumentalização pejorativa do identitarismo quanto os ataques pessoais disfarçados de crítica política.
O conceito de identitarismo tem suas raízes nas discussões sobre identidade como ferramenta de mobilização política. Talvez o primeiro texto importante que coloca a questão da identidade como articuladora da luta social tenha sido Combahee River Collective Statement, um manifesto publicado em 1977 por um coletivo de feministas negras. Nele a identidade é reivindicada como um ponto de partida para a ação política, a partir da experiência coletiva de mulheres negras, que não encontravam espaço nem no feminismo branco nem no movimento negro liderado por homens. O coletivo afirma que sua luta política se estrutura não em torno de abstrações universais, mas da afirmação concreta de sua identidade e experiência vivida. Mais recente, Mapping the Margins (1991), talvez seja o texto mais influente nos círculos progressistas nas mídias sociais. Nele, Kimberlé Crenshaw introduz o conceito de interseccionalidade para refletir sobre os limites dessa abordagem: embora a identidade seja uma fonte de poder e organização, ela também pode esconder diferenças internas aos grupos e criar tensões na formulação de políticas mais amplas.
A partir da segunda metade dos anos 1980, os termos “política identitária” (identity politics) e, posteriormente, “identitarismo” começaram a ser empregados com um viés crítico, tanto dentro da própria esquerda quanto por setores conservadores. Diversos autores argumentam que a ênfase excessiva na identidade fragmentava os movimentos sociais, desviando o foco da luta por transformações estruturais, especialmente em relação à desigualdade de classe. Dentro da tradição marxista, a política identitária é criticada por substituir a organização coletiva por uma política de representatividade que, em sua visão, não alterava as bases materiais da opressão. Do outro lado do espectro político, intelectuais conservadores e críticos do multiculturalismo passaram a usar o termo “identitarismo” para denunciar o que consideravam uma fragmentação da sociedade ocidental e um enfraquecimento dos valores democráticos em favor de reivindicações grupais. Assim, o identitarismo se consolidou como um conceito carregado de ambiguidade: para alguns, ele representa um aprofundamento da luta por reconhecimento e direitos, enquanto para outros, trata-se de um desvio da política universalista e da construção de um projeto comum.
Assim, o termo “identitarismo” não me parece adequado para descrever com precisão os movimentos sociais que se organizam em torno de raça, gênero e sexualidade, e muitas vezes mais atrapalha do que esclarece o debate. Ele sugere uma fragmentação artificial da sociedade, ignorando que a própria organização da classe trabalhadora depende da construção de uma cultura proletária, um processo historicamente contingente e socialmente construído. Da mesma forma, os movimentos que lutam contra opressões raciais, de gênero e sexuais não são meras expressões de particularismo, mas respostas concretas a desafios estruturais que marcaram os séculos 20 e 21. Gênero, raça e opressão sexual não são variações culturais superficiais, mas componentes estruturantes da sociedade. Além disso, as identidades negras e femininas são construções sociais, não essências fixas, como bem estabelecido na literatura que fundamenta esses movimentos. Embora existam correntes essencialistas dentro deles, como alguns setores do feminismo radical que disputam as definições de mulher, esses grupos são minoritários. O reconhecimento de uma identidade coletiva — seja como trabalhador, negro ou mulher — é um processo histórico e social que envolve não apenas a percepção subjetiva, mas também a luta por direitos e transformação estrutural. Assim, em vez de fragmentação, esses movimentos representam a continuidade de um processo de organização política que historicamente sempre envolveu a construção de identidades coletivas.
Maria Rita Kehl alerta para o risco de movimentos sociais se fecharem em “nichos narcísicos”, onde a validação interna se torna mais importante do que o diálogo com a sociedade. Esse é, de fato, um fenômeno real e preocupante, mas que extrapola os movimentos ditos identitários e está presente em diversos setores da política e da sociedade. Tanto grupos de esquerda quanto de direita têm desqualificado seus adversários com ataques ad hominem, evitando um debate substantivo. Eu mesmo já tive argumentos desqualificados pela esquerda, sob a acusação infundada de receber dinheiro de fundações internacionais, e pelo MBL, por ser professor da USP. Bolsonaristas recorrem frequentemente a rótulos como “comunista” ou “globalista” para evitar engajar-se com críticas ao governo ou às suas posições políticas. Esse fechamento discursivo não é exclusivo dos movimentos identitários, mas um traço recorrente em diversos grupos políticos e sociais que operam em bolhas cognitivas. A própria academia pode se tornar um espaço de exclusão, onde determinados debates são filtrados por critérios de pertencimento, e não por um exame rigoroso de argumentos. Apontar esse risco é legítimo, mas reduzi-lo exclusivamente aos movimentos identitários apenas reforça o isolamento e dificulta a construção de pontes de diálogo — o que, ironicamente, parece ser a intenção original da crítica feita por Kehl.
Um dos mecanismos de exclusão de atores do debate é uma versão deturpada do conceito de lugar de fala. Originalmente, esse conceito tem uma função legítima no reconhecimento de que diferentes experiências de vida moldam as perspectivas dos indivíduos. No entanto, seu uso deturpado se tornou uma ferramenta de silenciamento. O argumento de que “você não pode falar sobre esse assunto porque não viveu isso” pode levar a um fechamento radical do debate, desqualificando automaticamente qualquer interlocutor que não pertença a determinado grupo. Isso não contribui para a construção de conhecimento, mas para uma fragmentação onde o diálogo se torna inviável.
A crítica feita pelo Mundo Negro exemplifica esse problema. Em vez de responder diretamente aos pontos levantados por Maria Rita Kehl, o site optou por atacá-la pessoalmente, desviando o foco do debate para sua identidade e história familiar. Esse tipo de resposta ignora os argumentos e recorre a desqualificações que não contribuem para o debate de ideias. Além disso, a tentativa de deslegitimá-la foi direcionada a seu avô, o que é um equívoco, pois sua posição política e suas análises não devem ser reduzidas à sua ascendência. Maria Rita Kehl se posiciona como uma mulher branca de esquerda, e seus argumentos devem ser rebatidos e contestados dentro do debate público, levando em consideração sua perspectiva, mas sempre no mérito das ideias, e não por meio de ataques à sua pessoa ou à história de seus antepassados.
O uso do termo “movimento identitário” como locus privilegiado de fechamento cognitivo acaba reforçando o que tenta criticar: a fragmentação das lutas sociais. O fechamento de grupos em nichos isolados é um problema real que deve ser enfrentado, mas tratá-lo como efeito do “identitarismo” fecha mais portas do que abre. Ainda mais prejudicial, no entanto, é o ataque pessoal a Maria Rita Kehl, que, em vez de uma discussão baseada em argumentos, opta por desqualificá-la, desviando o debate do mérito para sua identidade e história familiar. Esse tipo de estratégia não apenas impede um diálogo produtivo, mas também reforça a polarização, inviabilizando qualquer possibilidade de construção de pontes e entendimento mútuo.