A história do conhecimento é marcada por momentos em que a análise sistemática, baseada em métodos rigorosos, desafiou e transformou impressões subjetivas amplamente aceitas. Por séculos, por exemplo, acreditava-se que a Terra tinha apenas alguns milhares de anos, e o senso comum limitava-se a estimar eventos passados em escalas de séculos, jamais de milhões de anos. Foi apenas com o avanço da geologia e a descoberta da radioatividade que se tornou possível datar rochas, revelando que a Terra tem bilhões de anos.
Da mesma forma, a invenção do telescópio no início do século 17 permitiu que Galileu Galilei observasse a Lua em detalhes, identificando uma superfície irregular, repleta de montanhas e crateras. Esse achado contrariava o senso comum, baseado em uma visão aristotélica, de que os corpos celestes eram esferas perfeitas e imutáveis.
Por anos, o senso comum sobre o tamanho de multidões no Brasil foi moldado por avaliações subjetivas e dados sem um método sistemático, geralmente fornecidos pelos próprios organizadores do evento ou pela Polícia Militar. Após as grandes manifestações de 2013, quando pesquisas de opinião indicaram que milhões de pessoas foram às ruas, as estimativas passaram a ser cada vez mais superlativas: os organizadores inflavam os números a patamares jamais atingidos novamente.
Esse cenário produziu discrepâncias gritantes entre as estimativas fornecidas por diferentes atores. Um dos casos mais emblemáticos foi um protesto “Fica Dilma”, em 2015, no qual a Polícia Militar estimou um público de três mil pessoas, enquanto os organizadores afirmaram que 100 mil haviam comparecido — uma discrepância de mais de 3.200%. Já o Datafolha, utilizando uma metodologia mais criteriosa, chegou a um número intermediário de 55 mil manifestantes.
Nos casos em que algum método foi utilizado, o mais comum para avaliar o tamanho de uma multidão era a multiplicação da densidade estimada de pessoas por metro quadrado pela área total ocupada. Essa abordagem, no entanto, apresenta limitações significativas, pois definir a densidade média de pessoas em uma área é um exercício pouco rigoroso, frequentemente baseado em impressões subjetivas. Além disso, esse método não permite estimar uma margem de erro, impossibilitando a verificação da confiabilidade dos números divulgados. Outra metodologia utilizada é a do Datafolha, que exige a contagem direta de pessoas realizada por pesquisadores in loco. Essa abordagem é muito cara e complexa, o que a torna rara e inviável para cobrir eventos de forma sistemática.
Desde 2022, o Monitor do Debate Político tem adotado um método mais preciso e replicável para estimar o público em manifestações. Utilizamos drones para capturar imagens aéreas de alta resolução de toda a extensão da manifestação, garantindo uma visão panorâmica detalhada da multidão. Essas imagens são processadas por um modelo de inteligência artificial treinado para contar cabeças em fotos de grandes aglomerações. Para aumentar sua precisão, aprimoramos o algoritmo com bases de dados contendo registros reais de manifestações. Diferentemente das metodologias tradicionais, esse método fornece resultados auditáveis e acompanhados de uma margem de erro mensurável.
Nesses anos, aplicamos nosso método em mais de uma dezena de manifestações abrangendo diferentes espectros políticos e sociais. Estivemos presentes, por exemplo, na Parada do Orgulho LGBT, na Marcha da Maconha e na Marcha para Jesus. Em todos esses casos, as estimativas que produzimos foram significativamente menores do que aquelas tradicionalmente divulgadas, contrariando expectativas e gerando descontentamento entre organizadores e militantes tanto de esquerda quanto de direita.
No ato bolsonarista realizado em Copacabana no último dia 16, em uma pesquisa que conduzimos em parceria com a More in Common, estimamos a presença de 18 mil pessoas, com uma margem de erro de duas mil para mais ou para menos. Nossa metodologia se baseia na contagem do público no momento de pico, que, neste caso, ocorreu às 12h, coincidindo com o discurso do ex-presidente.
Para garantir transparência e auditabilidade, além de disponibilizarmos um relatório explicitando a metodologia utilizada, também tornamos públicas as fotos aéreas utilizadas na contagem, permitindo que qualquer interessado possa verificar os dados e o processo aplicado.
Paralelamente, o Datafolha, utilizando sua metodologia, estimou um público de 30 mil pessoas, enquanto o site Poder360, aplicando a técnica tradicional de estimativa por densidade, chegou ao número de 26 mil participantes. A diferença entre esses números reflete não apenas as abordagens distintas, mas também os diferentes critérios adotados em cada método. O Datafolha busca estimar o total de pessoas que estiveram presentes ao longo do evento, enquanto nossa metodologia foca exclusivamente no momento em que a concentração de manifestantes atingiu seu ápice. Já o cálculo do Poder360 depende de uma estimativa visual da densidade da multidão. Dessa forma, apesar das diferenças, os três números são compatíveis.
A Polícia Militar do Rio de Janeiro, em contraste, divulgou que 400 mil pessoas estiveram presentes na manifestação, um número drasticamente superior às estimativas feitas por diferentes metodologias independentes. Segundo apuração do jornalista Octavio Guedes ao G1, o Coronel Mendez, da PM, teria inicialmente estimado o público em 50 mil pessoas. A divulgação oficial superestimada teria sido feita por ordem do governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro (PL). Embora o governador negue qualquer interferência nos números divulgados, a discrepância gerou questionamentos e levou a deputada estadual Renata Souza (PSOL-RJ) a solicitar que o Ministério Público do Rio de Janeiro investigue se houve ato de improbidade administrativa na manipulação dos dados pela PM.
A história do conhecimento mostra que percepções enraizadas podem ser reformuladas quando submetidas a métodos rigorosos. Assim como a ciência desafiou crenças sobre a idade da Terra e a superfície da Lua, no Brasil, a contagem de público em manifestações está passando de estimativas arbitrárias para abordagens mais precisas e auditáveis. O caso da manifestação em Copacabana evidencia essa disputa — enquanto cálculos com método científico apontam para poucas dezenas de milhares de pessoas, estimativas inflacionadas continuam a moldar narrativas políticas. Isso reforça a necessidade de critérios transparentes e replicáveis, garantindo que o debate público se baseie em dados sólidos, e não em impressões subjetivas.